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Esta reflexão começa num ônibus de excursão na cidade de Campinas, interior de São Paulo. Éramos uma turma de alunos de Ensino Médio, de todas as séries, rumo à Unicamp, onde acontece anualmente um grande evento de apresentação e divulgação do ensino e da produção acadêmica da universidade. Alguns meninos levavam na mochila e nas costas um pandeiro, um cavaquinho e um violão: a ideia era fazer um pagode quando chegassem por lá. O esquenta se dava viagem. Um outro colega batia ritmicamente no banco do ônibus, improviso que provavelmente se estenderia em algum banco de praça da faculdade. A professora que nos acompanhava fazia questão de reprovar os alunos barulhentos, que cantavam alto ao fundo do ônibus. Ao entrarmos na Cidade Universitária, passando por uma portaria e por um grupo de policiais, a professora decide, antecipadamente, nos dar um conselho que também tentava nos traçar um destino:
“Olhem bem para a Unicamp, vocês jamais pisarão aqui como estudantes…no máximo, faxineiros ou funcionários de manutenção”. E deu um risinho sarcástico.
A sentença tinha seus respaldos sociais: nossa escola ficava próxima ao condomínio de funcionários da Unicamp e, de alguma forma, estávamos mais perto de ocupar postos com baixa qualificação do que tornarmos acadêmicos. Se algum de nós quisesse passar da ponte pra lá, certamente enfrentaria muitas dificuldades, tanto materiais quanto imateriais. Após mais de dez anos deste episódio, posso afirmar que os desafios imateriais foram os piores.
Talvez por eco da voz desta professora, cresci acreditando que alguns espaços não eram para mim. A Unicamp mesmo, lugar onde algumas pessoas da minha família ainda acham que é um hospital, foi um espaço de trauma por muitos anos. Eu já era graduanda no segundo ano de Letras na USP quando precisei chegar à universidade campineira para um evento. Acabei me perdendo, não sabia andar no campi, hiperventilei e caí. A quem me socorreu, atribuí o piripaque ao calor da cidade.
Morando em São Paulo, descobri que algumas pessoas que conheci tinham a mesma sensação de desconforto com a USP. Uma dessas pessoas, que já era uma profissional bem-sucedida, relatou para mim o incômodo do dia em que pisou os pés na universidade pela primeira vez. Outra pessoa, inclusive muito próxima e muito querida, me persuadia em pequenas doses de comentários a desistir da ideia de continuar estudando ali. A USP tinha tudo para ser um trauma para mim. Porque, assim como a Unicamp, parentes meus só entraram lá para trabalhar em obra. No caso, meu vô, que foi mestre-de-obras do Velódromo na década de 1970. Talvez o trauma uspiano não exista porque só soube da história depois de adulta. Nenhum fantasma da subalternidade me espantou do caminho de volta à cidade onde nasci.
Mas ainda sentia acuada com a dimensão de certos lugares. Casa das Rosas, nunca consegui entrar. Biblioteca Mário de Andrade, não passava da sala de leitura. É curioso que aconteça justamente em espaços gratuitos, de ensino e/ou de cultura. Meu vô, em 2012, quando me acompanhou até a USP para realizar a matrícula, me perguntou duas vezes (uma na ida e outra na volta): você tem certeza que não precisa pagar nada?
No primeiro ano de USP, fui voluntária do Cursinho da FEA (Faculdade de Economia e Administração), uma das faculdades mais luxosas do campi do Butantã. Naquela época, parte mínima do alunato de graduação e pós-graduação era favorável à instalação de catracas. Houve resposta do movimento estudantil. O projeto sofreu recuo. Os alunos do cursinho, todos da rede pública, desabafavam: nem precisava da catraca para se sentir intimidado em se aproximar do prédio.
Eu passei a chamar essa tensão psicossomática de “catraca subjetiva”. Nenhuma novidade do ponto de vista da análise das experiências de sujeitos subalternizados. Há textos (apócrifos) de Freud que falam de filhos de operários que tiveram piripaque quando foram viajar de avião pela primeira vez. Há uma extensa bibliografia sociológica sobre o assunto, começa com Bourdieu. Há quem defenda e fetichize a curva determinista de certas ciências e especulações, pois para algumas pessoas (privilegiadas ou não, às vezes é só questão de adesão ideológica, como no caso da excursão), é importante que as coisas permaneçam nos mesmos lugares que sempre estiveram.
Um pouco antes da pandemia, no último dia em que estive na USP, ocasião em que pude ministrar um minicurso de extensão, flagrei uma rodinha de calouros da Poli. Todos negros. A cena só foi possível graças à implementação de cotas raciais na graduação, que ocorreu há pouquíssimo tempo — não cheguei a ter colegas cotistas. Uma aluna do grupo dizia: eu tenho vergonha de falar que estudo na USP. Apesar de aprovados, predominava a sensação de que aquela sigla, historicamente defendida por uma pequena elite intelectual branca, ainda era sinônimo de privilégios e posicionamentos com os quais eles não partilhavam.
Das duas, uma: ou se queima a catraca subjetiva forjando uma dimensão coletiva (e também subjetiva) do espaço em que se ocupa, a partir de uma narrativa-outra da instituição (a USP de Milton Santos, de Sueli Carneiro, de Nilma Lino Gomes etc) ou se deixa levar por um regime que legitima a impossibilidade da nossa trajetória. No primeiro caso, o trabalho é maior: é preciso fundar uma nova forma de ser-saber, outra linguagem.
[Continua…]